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Ensaio: Pedras que cantam, deitam e rolam: impressões sobre vida e obra de Assis do Sertão (Por Rômulo Rossy Leal Carvalho)

Assis do Sertão é um artista polivalente. Consegue mapear, como um antropólogo escarafuncha uma cultura ou culturas, elementos que fazem parte da seara sertaneja de uma forma ímpar.

Por Rômulo Rossy Leal Carvalho

Rômulo Rossy e o prof. Francisco de Assis Sousa

Tomo licença para, parafraseando o escritor piauiense Homero Castelo Branco, me referir a uma das mais ilustres personalidades nascidas em seio sãojuliãoense, chamando-o assim: Assis do Sertão, sujeito que atende pelo nome completo de Francisco de Assis Sousa, poeta, cronista e professor.

Assis do Sertão é um artista polivalente. Consegue mapear, como um antropólogo escarafuncha uma cultura ou culturas, elementos que fazem parte da seara sertaneja de uma forma ímpar. As experiências de quando era infante galgaram-lhe passos que dizem respeito ao seguinte — como escrevo em “História em Crônicas” (2019) —: “o cronista, antes de tudo, é um bom observador”. Assis, além de bem observar, tem outra característica que tão bem justapõe a observação: ele sabe, com polidez, alinhavar ideias, fatos, aglutinando descrição, narração e dissertação em seus textos, sempre munidos de informações múltiplas e um olhar apurado, com método peculiar, e o que é sintomático: se amalgama à literatura libertária sendo dela um expoente.

Capa do primeiro livro de crônicas do prof. Francisco de Assis Sousa: Sorria, enquanto é tempo!

O hoje presidente da Academia de Letras da Região de Picos, meu confrade na Academia de Letras do Vale do Riachão e que já fôra meu professor de Literatura, ensinou-me, pelo seu exemplo, como redigir uma crônica. As que eu já conhecia — algumas, também, por meio dele — geralmente eram as de Rachel de Queiroz, até hoje uma das minhas autoras prediletas. Assis, por outro lado, tem uma capacidade de síntese singular. Ele escreve o que é preciso e, magistralmente, dá conta de dizer o necessário. Nele se interpola a crença de que um bom texto é aquele em que “se escreve pouco, mas se diz muito”.

Tive um professor na universidade, quando cursei História, que afirmava que todo texto precisava: na introdução (dizer o que se ia dizer); no desenvolvimento (dizer); e na conclusão (dizer o que foi dito). Dissidências à parte, a tese subsiste na escrita de muitos autores/escritores brasileiros. Em Assis, o tempo não é dinheiro, como apregoa a filosofia — hoje eu diria neocapitalista — tratada por Edward Palmer Thompson, historiador inglês. O tempo é uma valsa que precisa ser tocada, ou um berrante, ou ainda um aboio do gado, no fim de tarde, com um sol ainda a pino, escaldando as costas do sertanejo calejado.

Prof. De Assis — como a ele me refiro — já lançou, como autor independente, seis livros: “A margem esquerda do rio” (poesia, 2007), “Sorria, enquanto é tempo” (crônicas, 2011), “Filhos do Asfalto” (crônicas, 2014), “O visionário” (ensaio biográfico, 2014), “Pedras que cantam” (crônicas, 2016) e “Minha vida em sua boca e outros poemas” (poesia, 2019). Seus escritos mergulham, sem pavidez, e revelam-se, numa linguagem que se desnuda completamente e decorre dos seus sentimentos tanto memorialistas, como seu profundo senso crítico calcado na responsabilidade social e política que não escapa à sua retina.

Capa de Filhos do Asfalto, lançado em 2014.

Assis é um poeta das palavras que insistem em não serem escamoteadas, que serpenteiam depois da chuva tão almejada pelo sertanejo pobre e inquebrantável — mas também livre e feliz —, e que, ao cheiro da terra molhada, dizem e se materializam na busca solene e inexaurível de libertar, pela arte, as pessoas, haja vista que “(…) temos o pleno dever de expor aquilo que criamos” (Joseph Beuys) — epígrafe que escolheu para “Filhos do Asfalto”.

O sujeito que lê e, mais que isso, absorve o que é lido, nunca é ou será aquilo que já foi um dia, dizia o antropólogo e sociólogo pernambucano Gilberto Freyre. Decerto que a poesia e a vontade pulsante impulsionaram De Assis desde a infância a recriar o universo por meio da leitura e, consequentemente, da literatura, razão pela qual ele, assertivamente, declara: “o sertão é um mundo”. E foi e continua sendo este mundo que fascina Assis do Sertão que o serve e é por ele servido de um rebento literário.

Ao ver do gigante José Gilson Chagas: “Assis Sousa não será um nome comum; há de ser marcado entre os raros. O amanhã lhe promete destaque em lista nobre (…)”. Eu ouso, a partir da afirmativa do escritor e professor santo antoniense, afirmar que este amanhã já chegou, e viçosamente, num hoje que viceja o ser em sobreposição ao ter, meramente. E quanto ao nome, como já escrevi sobre Raul Seixas, digo que Assis é um daqueles a quem o nome “ilustra um renome”, isto é, uma pessoa renomada — incluídos aí caráter, responsabilidade e justiça social — é sempre uma referência, e isso não acontece com qualquer um, dados critérios que implicam em arte, educação, ética e compromisso social.

Na obra do Prof. Assis, o sertão é retratado de forma bonita, colorida e alegre.

Me fascina e inspira em Assis do Sertão, para além do chamado que toma de John Lennon: “Give Peace a Chance”, a sua capacidade de ler as pessoas e seus comportamentos, desde uma escala que compreende o homem da roça de um município remoto até acontecimentos que dizem respeito ao globo inteiro, especialmente as megalópoles. Esse percurso, que considero difícil de costurar, não foge à agudez da sua percepção e se transluz na sua caneta sempre robustecida e abastecida da tinta da prudência.

Como artistas de peso como Raul Seixas, Renato Russo, Cazuza, Chico Buarque, Assis se recusa a se calar, pois sabe que, silenciando-se ou sendo silenciado, as pedras irão cantar, e digo mais: deitar e rolar à vontade. Na sua escrita, o inverno e o outono passam de forma mais célere, enquanto o verão da chama que arde em seu peito se prolonga até a chegada da primavera em que, gentil e vividamente, colhe as flores que plantou e que planta nas suas múltiplas funções como pessoa e como autor. Ainda espelhando sua inspiração em artistas brasileiros e estrangeiros, cabe a apurada e desinibida forma com que encara os rumos que uma humanidade, muitas vezes, definhada, engatinha, denunciando, como o fez Bruno Latour, uma modernidade que praticamente, senão o fez, dissolveu o humano a ponto de transformá-lo num objeto, ora peça de compra, ora peça de venda.

Não se ausentam dos seus textos informações que excursionam livremente pela história, pela filosofia, pela sociologia e pela antropologia. O esporte também é um de seus fortes. A paixão pelo futebol também é constante em algumas de suas crônicas — vide “A arte de Leonel Messi” (2016) e “Coisas do futebol” (2014) a título de exemplo — quando a demonstra, em texto, sem negligenciar do caráter mercadológico que existe em volta do esporte, mas também, e felizmente, a felicidade do encontro entre não só países, mas mundos, como acontece em uma Copa — mesmo que para acontecer uma, como o foi a mais recente, tanto sangue tenha sido derramado.

Assis Sousa não é de chorar. Mas não escapa, interiormente, das lágrimas resultantes do inconformismo diante de um determinismo social e histórico em que se acentuam desigualdades raciais radicais no Brasil. Ele faz da crônica e da poesia um manifesto político, até mesmo naquelas que aparentam tratar apenas de uma memória ou de uma conversa entre dois amigos. E isso confere a originalidade e a genialidade do autor: da situação corriqueira, banal, ele extrai um texto, uma memória, que servirão de subsídio para o entendimento de um passado que dirá muito do que se viverá num futuro presente ou num presente futuro.

Capa do Pedras que Cantam, lançado em 2018.

Assis do Sertão já está no futuro e já é, aos moldes da famigerada sentença, “alguém na vida”, e muito destacamente na literatura não só estadual, nacional, mas universal. A crença de que só se chega a ser “alguém na vida” em um dado futuro — que é sempre aquele em que há benesses materiais de sobra — é severamente criticada pelo filósofo e ambientalista indígena Ailton Krenak: a criança já é alguém na vida, o jovem já é alguém na vida, nós já somos alguém. E Assis do Sertão o é. E, sendo esse alguém que, além de bem escrever, poetizar e agir no mundo — como diria Paulo Freire, alguém que nele se insere, e não somente se adapta — ele tece sua história com uma longanimidade preclara como ser vivo, porque entende o valor do humano: nas relações pessoais e sociais, e na dignidade humana que tem sido, sobretudo face às brechas e fagulhas totalitárias que insistem em resistir à vida e à liberdade, profundamente abalada nos últimos anos. Vamos sorrir enquanto é tempo. Talvez, chorar também, se for o caso, para que não haja a “morte da morte”, como diria Phillipe Ariès — um exemplo claro da postura negacionista que tem conspurcado, em grande medida, o Brasil dos últimos anos.

Vida longa a escritores e professores com a envergadura de Francisco de Assis Sousa. Esticando as pernas na rede até hoje, ele certamente, vislumbrando as estrelas, manterá sólida e vivaz sua inspiração para nos brindar com outros tantos trabalhos que orvalharão a esperança de que tudo o que é adverso à liberdade e à criação, pela arte e pela educação, seja rapidamente detido.

Uma representação sucinta entre o inverno e a seca no sertão.

Como anota o escritor, advogado e membro da Academia Piauiense de Letras, José Ribamar Garcia: Assis escreve de forma espontânea e desembaraçada. Não haverá embaraço que o impeça de dizer o que deve ser dito, nem de fazer o que tem de ser feito. Essa é a responsabilidade de um bom e cônscio escritor. Enquanto vem mais uma crônica, mais uma poesia, e tudo se coaduna num livro, nós, seus leitores, as leitoras, os amigos, amigas, aguardamos a centelha que reflete do sol na pedra sólida que ele ouve cantar, ou melhor, que ele escuta e, depois, adverte que “viver é desafinar o coro dos contentes”.

 

Rômulo Rossy Leal Carvalho é licenciado em História (UFPI), especialista em Educação Especial e Inclusiva (FAEVE), mestrando em Antropologia Social (USP) e imortal da Academia de Letras do Vale do Riachão (ALVAR)

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