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Desertificação faz área do Piauí parecer Marte e desafia agricultores; veja fotos

Paisagem árida de Gilbués (PI) devora fazendas em extensão maior que a cidade de Nova York

Paisagem desértica de Gilbués (PI) está repleta de voçorocas, como são chamadas as fendas na terra que lembram cânions – Nelson Almeida/AFP

Cercado de crateras vermelhas que remetem a Marte, o pecuarista Ubiratan Lemos Abade estica os braços, mostrando dois possíveis futuros para suas terras, ameaçadas pela desertificação. Abade, de 65 anos, vive na maior zona de desertificação do Brasil: Gilbués, no estado do Piauí (a 765 km de Teresina), onde a paisagem árida e pontuada por cânions devora fazendas e já chegou a muitas propriedades, em uma área maior que a cidade de Nova York.

Segundo especialistas, o fenômeno é causado pela erosão galopante no solo frágil da região e exacerbado pelo desmatamento, pelo crescimento indiscriminado e, provavelmente, pelas mudanças climáticas. Mas centenas de famílias que vivem da agropecuária se recusam a abandonar esta terra desolada e recorrem à criatividade para desafiar as adversidades e chamar atenção para o problema.

Vista aérea de aberturas na terra vermelha e seca
Paisagem desértica de Gilbués (PI) está repleta de voçorocas, como são chamadas as fendas na terra que lembram cânions – Nelson Almeida/AFP

“Antes tinha mais chuva. Agora diminuiu, descontrolou. Por isso, a gente tem que trabalhar com irrigação. Se não for [assim], não tem como sobreviver”, diz Abade.

Ele aponta, à sua direita, para um campo de capim seco, que morreu antes que seu gado pudesse pastar ali. À sua esquerda, mostra um lote exuberante de capim regado com um sistema improvisado de irrigação, do qual depende para manter vivos suas vacas e a si próprio.

Ele implantou o sistema há um ano: cavou um poço e instalou uma rede de mangueiras.

“Se não tivesse irrigação, ficaria tipo aquele. Aquele eu não irriguei e está morrendo de sede”, afirma. “Tem que ter tecnologia [para produzir aqui]. Mas para quem é fraco de condições, fica difícil.”

‘TERRA FRACA’

Do céu, o “deserto” de Gilbués parece uma gigantesca folha amassada de papel-lixa cor de tijolo. O problema da erosão não é novo. O termo “Gilbués” provavelmente vem da palavra indígena “jeruboés”, que significa “terra fraca”, conta o historiador ambiental Dalton Macambira, da Universidade Federal do Piauí.

Mas a humanidade agravou o problema ao devastar e queimar a vegetação, cujas raízes ajudavam a conter o solo friável, e ao expandir as construções em uma cidade de atualmente 11 mil habitantes.

A cidade de Gilbués, no Piauí, fica na maior zona de desertificação do Brasil; a paisagem árida é pontuada por cânions Nelson Almeida/AFP

Gilbués foi cenário de uma corrida por diamantes em meados do século 20, de um “boom” de cana-de-açúcar na década de 1980 e, agora, é um dos principais municípios produtores de soja do estado.

“Onde tem gente, tem demanda por recursos naturais”, diz Macambira. “Essa atividade econômica acaba acelerando o problema e exige do ambiente natural uma capacidade de suporte que ele não tem.”

Segundo um estudo publicado em janeiro por Macambira, a área afetada pela desertificação mais que dobrou, de 387 km² para 805 km² de 1976 a 2019, afetando cerca de 500 famílias de agricultores.

Os cientistas afirmam que são necessários mais estudos para determinar se o aquecimento global acelera o fenômeno. Os agricultores constataram temporadas mais secas e de chuvas mais curtas, porém mais intensas, o que agrava o problema: as fortes precipitações arrastam mais terra e aprofundam ainda mais os enormes cânions, conhecidos como voçorocas.

Segundo Macambira, o aquecimento global só pode piorar a situação. Em regiões com problema de degradação ambiental, “as mudanças climáticas tendem a ter um efeito mais perverso”, afirma.

OPORTUNIDADES

Para as Nações Unidas, a desertificação é uma crise silenciosa que afeta 500 milhões de pessoas em todo o mundo e é causa de pobreza e conflitos.

Mas o problema também traz oportunidades, segundo Fabriciano Corado, presidente do grupo de conservação SOS Gilbués. O engenheiro agrônomo, de 58 anos, diz que, embora o solo de Gilbués facilmente sofra com a erosão, ao mesmo tempo é ideal, porque é rico em fósforo e argila e não precisa de fertilizantes ou outros tratamentos.

Assim como Abade, ele acredita que os agricultores precisam de tecnologia para sobreviver ao avanço da desertificação. Mas nada muito sofisticado, diz ele, destacando que produtores locais conseguiram resultados muito positivos, por exemplo, com a proteção da vegetação nativa, a irrigação por gotejamento, a piscicultura e a técnica milenar de cultivar em terraços agrícolas.

“Não temos que reinventar a roda. Os astecas, incas e maias já o fizeram”, afirma.

Ele lamenta, ao mesmo tempo, o fechamento, há seis anos, de um núcleo de pesquisa sobre a desertificação em Gilbués, que ajudava os agricultores a implementar essas técnicas. O governo do estado planeja reabri-lo, mas não definiu uma data.

A região também tem potencial de gerar energia solar, diz Corado, citando a abertura recente de um parque solar com 2,2 milhões de painéis. Outro está em construção.

Com a mistura adequada de conservação e tecnologia, “ninguém nos segura”, diz.

Fonte: Folha UOL

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