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“Agudo, eco, retorno!” (Por Rômulo Rossy Leal Carvalho)

Em memória dos 80 anos de Sebastião Rodrigues Maia - Tim Maia (1942 - 1998)

Por Rômulo Rossy Leal Carvalho

Tim Maia, uma das maiores vozes da MPB

Com o semblante tétrico, abespinhado por dentro, insone, sem money, o menino da Tijuca se punha no divã, dedilhando um violão dos acordes que nasceram “Azul da cor do mar”: “Ah, se o mundo inteiro me pudesse ouvir. Tenho muito pra contar. Dizer que aprendi”. E como o meu amigo Tim aprendeu: até nas reclamações renitentes com os parceiros da Vitória Régia, com exceção das princesas.

Mas o que ele teria aprendido mesmo? Talvez a “maneirar” no “baseado”, um coquetel de cocaína com uísque — como se o mundo moralista e impavidamente segregacionista e racista já não lhe fosse intragável —, na cachaça ou até nos palavrões. Está para nascer alguém que xingasse mais que o velho Tim — apelido que lhe foi atribuído por considerarem feio o de “Tião”.

Mas foi esse mesmo Tião da Tijuca, apadrinhado por padres, numa Igreja do mesmo bairro, pôde até ter vestido a camisa da fé na infância e parte da adolescência, mas o artista, embora carregue muito disso ao longo de sua vida, é polivalente demais para ser um em uma só índole. Já no auge dos seus cinquenta e cinco anos, no show da virada do ano, cantou emocionado — talvez, a mais emocionante pela ocasião, e depois de dizer, ironicamente, que era o cantor que mais comparecia a shows no Brasil — “Essa tal felicidade”, oferecendo-a à sua irmã mais velha, Maria, e estendendo a outros familiares e fez questão de enfatizar: “essa é uma música que fala da família”. Uma pena, não obstante, que a tal felicidade tenha sido apenas uma utopia. Muito de sua vida foi utópico, menos seu talento irrevogável que o fez ser considerado — e o que ele era — dono da maior voz masculina do Brasil, segundo a Revista Britânica Rolling Stones.

The Sputniks, na adolescência, foi só um pulo — primeiro pela parceria com o amigo de infância Erasmo Carlos (1941-2022), também nascido na Tijuca. Tim, desbocado, ansioso, impaciente e que não queria chá, café, Coca-Cola, mas sim chocolate, e talentoso ao extremo fez uma carreira, não talvez a que tenha sonhado, mas a que o eternizou pelo seu grave impecável aglutinado a um agudo irretocável sintetizados divinamente na canção “Você”. E isso não é o mais impactante: pelos direitos autorais de suas composições, familiares (seus filhos, mais precisamente) receberão por eles até 2068.

Do Rio, seu lar, no fim dos anos de 1950, foi aos Estados Unidos, ou aos States — como ele preferia dizer — onde experimentou, além das muitas drogas, a prisão e uns precipícios que muitos optam, quase que voluntariamente a se achegar. Sebastião soube ser um humano complexo, e como todos os artistas irrequietos — o mundo é mesmo dos artistas e dos loucos inconformistas com as falhas de retorno, agudo e eco dos estúpidos — deixou marcas contundentes no então soul que consolidou aqui em terras tupiniquins. Nem para sua mãe escrevia, durante esse tempo, e ela,  preocupada, pedia notícias — relatava ele no show do réveillon de 1997 a 1998.

Chegou a ser acusado de aludir em demasia um ritmo que fugia à lógica da brasilidade — como se houvesse um cânone sobre a música brasileira. Como todo cantor e compositor que se preze, retorquiu com “Do Leme ao Pontal” — dois extremos da seara litorânea da capital fluminense e, “sem contar com o Calabouço, Flamengo, Botafogo, Urca, Praia Vermelha. Tomo! Tomo guaraná, suco de caju, goiabada para sobremesa”. Uma letra tão breve, mas com um recado retumbante.

Tim teve que lidar com obstáculos que seus “amigos” talvez não tenham sentido tanto. Um deles foi o racismo. Mas ele próprio, debochado e crítico como era, soube, à sua maneira, driblar a hipocrisia de uma sociedade sedimentada e estratificada na invencionice de que tudo é belo e perfeito se houver amor. Ele também cantou esse sentimento, chegando a dizer que “só queria amar” e foi, para além disso, um cantor político. A curta e objetiva “Vale tudo”, superficialmente pode ser entendida até como preconceituosa, mas Tim, se bem observarmos apontava que tudo valia — qualquer tipo de desonestidade, porém uma dança entre pessoas do mesmo sexo era o mais incômodo à mesma sociedade do vale tudo e do vale o que vier e o que quiser. Há outra interpretação sobre essa letra relacionada a um ensaio em que até a meia-noite a dança, em um salão no Rio, só podia acontecer entre sexos opostos — daí nos shows ao vivo ele fazia questao de explicar: “agora, vale tudo, libera, libera!”

Tim foi a muitos mares azuis. Foi interplanetário. Quando me recordo da última apresentação em que somente cinco palavras saíram de sua boca: “vou pedir pra você voltar (bis)”, estremeço pelas lembranças do Tim compositor e mais ainda do Tim contraditório: que faltava aos shows sem pestanejar e queria estar presente quando, por problemas de saúde, já não podia comparecer.

Tim, grandioso, pomposo, rebelde, não só foi um ícone. Tim era o Sebastião com quem alguém podia acender um cigarro e sentar, à noite, e conversar por horas e horas. E ele, depois das desilusões que sofria, compor letras belíssimas, cujo deferência consequente não se restringia a ele, mas à sua forma de ler a si e ao mundo em sua volta — à espera da primavera. Talvez, por muito tempo, ele não tenha sabido da magnitude que foi, mas quem o acompanhou soube e sabe.

Quem seguiu o Tião da Tijuca, embora tenha ou não se decepcionado com um xingo ou outro seu — muito provavelmente algum paladino da moral —, via ali uma figura como poucas, e o que é emblemático: uma voz praticamente insuperável dos meados para o fim do século XX. Tim, the voice brazilian, o mar continua azul, não sei porque você se foi. Me dê motivo. Se não me der, nos encontramos, para tomar um gole de uísque, fumar outro cigarro, em outro apartamento em que você seja síndico. Saiba: “e eu gostava tanto de você”. Até sempre!

Rômulo Rossy Leal Carvalho é licenciado em História (UFPI), mestrando em Antropologia Social (USP), escritor e membro da Academia de Letras do Vale do Riachão (ALVAR)

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