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Crônica: Caça-palavras (Por Rômulo Rossy Leal Carvalho)

Assim sendo, mas sem acreditar piamente no que digo, as escolas do amanhã poderão diferir da Carta de 2070, onde as pessoas só terão como expectativa de vida 35 anos, e onde também poderão ser, de fato, extensões do lar, com a distensão apenas do afeto e da aprendizagem não plena, mas, ao menos, possível.

Por Rômulo Rossy Leal Carvalho
Quem nos garante o futuro?
Tomei uma cadeira à parte nos meados da última aula de Arte. Estava exausto, mas não a ponto de buscar, de uma vez por todas ⸺ pelo menos naquele ínvio instante ⸺, o porquê de tanta letargia diante dos conteúdos ministrados, além da pública e notória indiferença a toda e qualquer fala que eu proferia, bem como as dos gestores da Escola.
A primeira afirmativa que fiz foi de que a situação corrente estava sendo contraproducente para ambas as partes (não usei essa expressão “contraproducente), mas quis dizer que estava sendo vã a minha explicação que nem sequer entrava por um daqueles ouvidos, assim como estava sendo inútil a presença deles sem um propósito. Não que estarem presentes não conte para a situação, mas é preciso se fazer presente, e poucos ali logravam esse intento.
Questionei-lhes, no limite que me imputava, sobre a situação familiar (se havia família), sobre seus planos, sobre as percepções que tinham sobre si mesmos. As respostas foram tão dolorosas que não eram as carteiras riscadas, o quadro borrado que interessavam, mas a vida borrada, a alma amassada, a mente desnorteada. É assombroso pensar no coeficiente de bípedes (que são eles) que, numa idade de dez, onze a doze anos, já estão profundamente acometidos por transtornos de ansiedade generalizada.
Alguns, porém, que não a têm, não intencionalmente, ou talvez sim, “surfam” na onda e caminham ziguezagueando à espera de um destino qualquer, cujo fim é somente o de: “Amanhã eu vejo”, “pouco me importa”, “vá se lascar” ⸺ para poupar-nos de outros termos mais vulgares.
“Minha mãe não gosta de mim” foi uma frase marcante. Não sou juiz, mas devo lembrar que é sempre necessário ouvir todas as partes envolvidas em um caso, num inquérito. A sindicância da vida exige e propicia que, como numa democracia, todos sejam ouvidos. Ouvir é um verbo que saiu de moda. Todos falam, falam e falam, e dizem muito pouco. Nosso mundo tem dito pouco. Tem falado demasiadamente. Mas tem feito e dito muito pouco. Eu só vim entender melhor esse panorama depois de um ano como “arquivista” no Exército, em Picos ⸺  na realidade eu mais conversava com os e as militares do que arquivava ⸺; em seis meses como ajudante no Museu Ozildo Albano, e em dois anos de monitoria com alunos de graduação em História, assim como professor dos Anos Finais do Fundamental, Ensino Médio e Educação para Jovens e Adultos (EJA).
Enquanto uns estão a questionar o novo governo federal, a aplaudir ou criticar ⸺ e isto se estendendo às esferas estaduais e municipais, e o devem fazê-lo sempre desde que com base ⸺ professores, coordenadores, diretores estão a pagar uma pena de uma crime que não cometeram, porque um professor-educador, hoje, não é mais somente quem ensina, mas quem assume a função intensiva de assistente social, psicólogo, antropólogo, porteiro, terapeuta ocupacional, pedagogo, juiz de boxe, entre tantas outras ocupações pelas quais não é remunerado.
Por um momento, quiseram-me recuar ao insinuar que é só trocar de profissão. Não, essa não é a solução. Nós só ajudaríamos a tornar a situação ainda mais grave do que já está. Os seres humanos precisam de contato, precisam aprender a conviver (viver com), porque temos razão, e não somos evoluídos a ponto de não interagirmos mais. É como se os primeiros hominídeos (homo erectus, neandertalis, e só o sapiens) nos dissessem: “Olhem-se para vocês mesmos e vejam o que se tornaram!”, no mais jocoso olhar de deboche.
O sinal não tocou, e eu continuei a conversar tentando ajudar no que me cabia. Em contrato, este é o meu primeiro ano como professor em sala de aula, mesmo já estando nela, servindo, há nove anos. Desde os quinze, eu, com um pincel e uma folha na mão, acreditava no poder de uma educação capaz de tornar esse mundo menos injusto, ciente de que igualitário só em outra dimensão, se possível.
Entre os caças-palavras (meu “jogo” predileto na puerícia e até hoje) que respondi na minha infância, não encontrei as respostas que hoje busco, mas não me resta mais nenhuma dúvida de que, se a família é célula da sociedade, o organismo social jamais irá prescindir de uma estrutura que ofereça amor e atenção devidos e concretos. Assim sendo, mas sem acreditar piamente no que digo, as escolas do amanhã poderão diferir da Carta de 2070, onde as pessoas só terão como expectativa de vida 35 anos, e onde também poderão ser, de fato, extensões do lar, com a distensão apenas do afeto e da aprendizagem não plena, mas, ao menos, possível.
Rômulo Rossy Leal Carvalho é professor, licenciado em História, mestrando em Antropologia Social e escritor.
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