São Julião

Filho de pais saojuliãoenses se torna professor em Brasília e se destaca por trabalhos de inclusão de alunos de baixa renda no ensino superior

 (crédito: Carlos Vieira/CB/D.A.Press)
(crédito: Carlos Vieira/CB/D.A.Press)

“Por que não eu?” Esse é o questionamento que o professor de filosofia Ricardo Rocha busca semear em cada um dos alunos do ensino médio de Santa Maria. Mais do que uma dúvida, a interrogação ao fim da frase constitui uma provocação, um elã para a autoestima. O objetivo é instigá-los a buscar aprovação no ensino superior — principalmente na Universidade de Brasília (UnB), por meio do Programa de Avaliação Seriada (PAS). Desde 2012, quase 300 foram aprovados e, hoje, contam suas histórias para inspirar novos potenciais calouros.

A caminhada na carreira docente até alcançar esse resultado expressivo para a escola pública, ainda mais em um contexto de vulnerabilidade socioeconômica, começou em 2000, quando Ricardo ingressou no curso de filosofia da Universidade Católica de Brasília (UCB). Depois de formado, também com o diploma de licenciatura em mãos, passou ainda por algumas escolas e instituições de ensino particulares, como Arvense, Marista Champagnat e Centro Educacional Ludovico Pavoni.

Esposa e filhas do professor Ricardo Rocha, do CEM 404 DE Santa MariaArquivo pessoal

Em 2022, completa 15 anos da aprovação no concurso para professor efetivo da Secretaria de Educação do DF, cargo em que alcançou a realização profissional almejada e de onde não pretende sair até a aposentadoria. Ricardo atua no Centro de Ensino Médio 404 de Santa Maria, na parte Sul da cidade. Em 2012, foi eleito diretor por meio da gestão democrática das escolas públicas. Foi naquele ano que começou, junto aos colegas de trabalho, as iniciativas de incentivo ao ingresso no ensino superior. À época, as atividades ficavam sob responsabilidade do Grupo de Estudos Avançados (GEA), que coordenava a orientação sobre PAS, Enem, cursos profissionalizantes e estágio.

“Percebemos que, mesmo aqui, em uma escola de periferia, havia uma possibilidade muito grande, e por conta também das políticas afirmativas, as cotas sociais. Incentivávamos muito os meninos a buscarem essa possibilidade de entrar no curso superior. E a nossa referência, claro, é a UnB, que é a única pública e federal que temos aqui”, relata o professor.

Fora da grade, como atividade extracurricular, os professores ofereciam aulões de preparação para o PAS no contraturno. “Aqui a gente sempre entendeu que o PAS era a melhor forma de entrar na Universidade de Brasília. É mais democrático, é uma nota que o aluno vai construindo ao longo de três anos. Damos um suporte na inscrição também, porque é bem burocrático. Tanto é que muitos estudantes têm direito à isenção e não conseguem”, explica.

Em 2013, Ricardo foi reeleito e ficou à frente da direção até o fim de 2016, período em que a escola figurou entre as 10 públicas que mais aprovaram na UnB. Além do foco no acesso à universidade, ele conta que tentou promover outras pequenas revoluções que fizeram a diferença ao longo dos anos. “Liderei um grande processo de transformação da escola. Claro que não é um trabalho individual, mas precisa ter um líder, uma referência, que vai dar a direção mesmo”, afirma. Entre as ações, Ricardo elenca a implementação de provas multidisciplinares nos moldes das aplicadas pela UnB, e com redação; a criação do projeto sarau poético, que trabalha com os alunos ao longo do ano as obras do PAS; uma prestação de contas transparente para toda a comunidade escolar; e reformas no espaço físico.

Ainda durante a gestão dele estreou a festa junina da escola, aberta à toda a comunidade. “Hoje, é uma das maiores festas juninas da cidade. Foi realizada agora, em 9 de julho. Dá 4 mil pessoas na escola e não tem uma ocorrência de violência, nada”, orgulha-se. “Os estudantes passaram a ter um sentimento de pertencimento. A escola era muito pichada, violenta, muitas brigas. A gente zerou pichação. As pessoas chegam a dizer que parece escola particular. E eu até combato essa ideia. Eu falo: ‘Gente, mas por que o público tem que ser feio, pichado, sujo, bagunçado, sem ordem?'”

A continuidade do trabalho é outro ponto essencial elencado por Ricardo. O diretor atual, Felipe Lemos, foi supervisor da equipe gestora do professor de filosofia e dá essa atenção ao que foi desenvolvido anos atrás.

“Tem de ter continuidade, porque o resultado na educação só vai aparecer com o tempo. Muitos alunos foram aprovados nos últimos anos por conta de toda uma cultura que a gente criou”, observa Ricardo.

(crédito: Carlos Vieira/CB/D.A.Press)
Com alunos aprovados no PAS em 2021; com os pais, Emídio e Nilta, na formatura; a mulher, Paolla, e as filhas, Lara e Luiza; durante aulão; com os pais e o irmão, RildoMarcelo Ferreira/CB/D.A Press

Início de uma nova era

Mesmo depois de deixar a direção, Ricardo Rocha permaneceu engajado no trabalho voluntário com foco no acesso dos estudantes de Santa Maria à UnB. Assim que as aulas retornaram ao modelo presencial, os gargalos deixados pelo longo período de afastamento da sala de aula motivaram a criação do Mais 1 no PAS, em outubro de 2021.

“Começamos a fazer aulões, primeiro para o Enem, porque o exame estava chegando, em novembro. Depois focamos estritamente no PAS, porque o projeto pedagógico da escola é muito baseado nele”, detalha. “Os aulões foram importantes porque a gente trabalha estratégia de prova, não é só o conteúdo das disciplinas”, completa.

(crédito: Carlos Vieira/CB/D.A.Press)

Um dos alunos relatou ao professor que, se não houvesse participado do aulão no dia anterior à prova, teria ignorado a informação de que uma questão errada anula uma certa e sairia prejudicado da seleção. “Principalmente por conta da pandemia, percebemos que estava precisando dar esse ‘choque’ neles. A gente colocou aqui, em março, 500 meninos, no sábado à tarde, para fazer abertura do projeto deste ano”, conta, apontando para o pátio central do CEM 404.

Todos os professores do projeto coordenado por ele são voluntários e atuam nas quatro escolas de ensino médio de Santa Maria. Ricardo foi pessoalmente a cada uma para conversar com os respectivos gestores e pedir apoio na empreitada. Hoje, além do CEM 404, o CED 310 e o CEM 417 recebem aulões preparatórios, um sábado por mês, em esquema de revezamento. Os alunos do CED 416, que não conta com pátio coberto, assistem às apresentações na escola vizinha.

“Então, aquela história: ‘Ah, aluno não quer nada’. Ofereça. Se você oferecer um projeto como esse…”, suspira o professor, motivado com os resultados do projeto, que reproduz o seguinte lema: “Filho de trabalhador virando doutor”. “Num sábado à tarde você colocar 500, 300 estudantes numa escola é muita coisa, sabe?” E os resultados já nem podem mais ser contados nos dedos das mãos. “Nesse último resultado, que saiu agora, de maio para junho, nós tivemos 32 aprovados, só do 404. Entre eles, tivemos uma aluna, chamada Gleiciane, que passou para medicina”, elenca o professor. “É uma gratificação muito grande, um orgulho, né?”

Os depoimentos de sucesso e os agradecimentos chegam presencialmente e por meio de áudios nos aplicativos de mensagem. São relatos de alunos que se tornaram os primeiros da família a ter acesso ao ensino superior e de estudantes negros sendo aprovadas para o curso de direito e se tornando referências para outros jovens da comunidade, por exemplo.

“Tem um menino, o nome dele é Roberto Augusto, que passou para direito e fala: ‘Ó, sou da comunidade, estudei aqui na periferia, no CEM 404, e tô aprovado. Tô lá na UnB'”, envaidece-se o docente. Todas essas histórias são apresentadas, em alguns dos aulões, para os novos estudantes das escolas, criando um ciclo virtuoso que se afasta cada vez mais da realidade extramuros e impulsiona a mudança social. “Por isso que no projeto envolvemos as outras escolas também. Somos a mesma Santa Maria.”

A autoestima e o senso de justiça social são elementos essenciais no processo e também trabalhados nos aulões, que combatem o mito da meritocracia. Ricardo ressalta que resultados do Enem mostram que apenas 30% da aprovação é mérito do aluno. O restante se divide entre o trabalho da escola e as cotas sociais. “Combatemos (essa ideia) porque senão eles se perdem. Vão lá para o direito e não voltam também para base. ‘Ah foi meu método, eu estudei, os outros que não quiseram.’ Não, não é assim. Cada um tem uma realidade, não é uma coisa tão homogênea”, reforça.

Do outro lado, vem o estímulo àqueles que se sentem incapazes. “Falamos muito da UnB, mas se a gente for pegar as federais e as universidades privadas, aprovamos muito mais. A gente faz esse recorte pra dizer que a universidade é pública, é nossa, é um espaço que vocês (os alunos) têm que ocupar. Metade das vagas do PAS é para vocês. Então vão lá e ocupem esse espaço”, brada o professor.

Hoje, o CEM 404 está cada vez mais ocupado por ex-alunos, que voltaram para dar aulas ou contar suas trajetórias. São professores, dentistas, estudantes de direito, de medicina, de filosofia e de tantos outros cursos que se apresentaram como possibilidades após as portas abertas com o ingresso no ensino superior.

A origem e o futuro

Filho do casal Navez do Emídio e Dona Nilta, da cidade de São Julião – PI, Ricardo é neto de Navez Rocha, o saudoso Vezinho e primo do ex-prefeito de Vila Nova Arinaldo leal e da ex-primeira dama de São Julião, Rufina Isabel.

O professor Rocardo conta que sempre acreditou na educação como oportunidade de ocupação de espaços na sociedade. Especialista em filosofia e existência e gestão escolar, despertou para o tema e para a importância da educação ainda na juventude, quando foi seminarista. O desejo de se tornar padre o levou ao Seminário dos Religiosos Pavonianos, congregação que tinha como trabalho central a educação.

A própria trajetória de vida guarda semelhanças com a de vários alunos para os quais leciona ou lecionou. “Eu sou de uma família muito simples. Nasci e fui criado na periferia do Gama. Meu pai é garçom. Minha mãe, dona de casa”, relata. Dona Nilta tem 69 anos e Seu Emídio, 76. Ele perdeu o emprego quando o restaurante em que trabalhava, na região central de Brasília, fechou em razão da pandemia.

Depois de terminar o ensino médio e cursar filosofia no seminário, o anseio de Ricardo de seguir a vocação religiosa arrefeceu, mas ajudou a pavimentar o caminho que seguiria na carreira. Hoje, aos 40 anos, acumula outras vitórias profissionais. É consultor em Ciências Humanas e Sociais da Rede Sesi e membro do Observatório da Educação Básica da UnB.

A escola que o recebeu de braços abertos foi também o local que proporcionou o principal encontro de sua vida: com a professora de química Paolla Martins. Casados há 10 anos, eles são pais de Lara, 8, e Luiza, 4. A mulher, inclusive, cuida da parte logística do projeto e é essencial para mantê-lo em ação. Juntos, os dois vão em busca de marcas ainda mais emblemáticas e, quem sabe, rumo ao “mais mil no PAS”.

A coluna Nossos mestres é publicada todo último domingo do mês.

Fonte: Correio Braziliense

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